terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Ela caminhou um pouco pela casa vazia e silenciosa, liberta ao desfilar sem roupas. Soltou os cabelos longos, ligou o som. Kashmir tocava a um volume descomunal enquanto ela admirava as curvas e as marcas de seu corpo desnudo em frente ao espelho. Alguns novos roxos, algumas velhas cicatrizes. No rosto um semblante desesperador, como se não existisse voz para um grito.

Cansou-se das sombras da visão e dirigiu-se à cozinha. Seu café já devia estar pronto.

Ao esperar que ele não lhe queimasse mais os lábios, sentou-se, desenhando círculos às palavras mal acabadas de um texto qualquer, em uma folha qualquer. Desenhou uma cabana e um lago. Começou a desenhar uma face, mas inquietou-se com o local.

Sem se importar com o fato de que já era meia noite e meia e de que se encontrava na mais pura solidão, saiu, deixando a bebida amarga esfriando sobre a mesa.

Vestida com um shorts jeans e a camiseta desbotada de uma banda antiga do colegial, primeiras peças à vista, acompanhou o ritmo das nuvens que tentavam encobrir o brilho da lua.

Subiu a rua, dobrou à direita. Normalmente teria ido para o outro lado, mas a noite lhe indicara o acaso.

Sem dinheiro, sem telefone. Sem vontade de se comunicar com aquilo que pudesse palavrear. Abominava a ideia de que teria de aturar vozes. Não conseguia cultivar antipatia nem mesmo aos mais falsos seres do convívio.

Cruzou o parque e não avistou ninguém além das árvores. Chegou na avenida principal e deu olá somente ao vento. As luzes dos postes brilhavam intensamente na rua deserta.

Caminhou mais alguns metros e enxergou fumaça. Correu em direção a ela, mas não havia nada lá.

Ao lado da sorveteria encontrou um jornal atirado ao degrau. O juntou, era da semana passada.

Por horas vagou naquela cidade abandonada. Procurando se encontrar, procurando saber se só ela estava acordada. “Poderia ter vindo sem roupas”, dizia sua mente transtornada. Mas sorria por não ter ninguém ali.

Bem, voltou pela estrada do parque. A cena estava igual a de antes. O vazio, as árvores.

Chegando em casa, somente o som do silêncio.

Ela nem lembra como, mas deitou-se na cama e mergulhou profundamente nos sonhos.

Lá fora ainda era escuro quando, num solavanco, despertou. Talvez tivesse dormido demais, talvez de menos.

Acordou exausta, como quem correra milhas. Com os olhos meio cerrados, encontrou a pia e encheu um copo com água. Ao virar-se, fitou a direção da mesa central.

Um corpo nu, gélido, jazia sobre palavras mal acabadas de um texto qualquer, em uma folha qualquer. Ao lado, uma bebida amarga fria e uma melodia que entrava contígua com o sol, batendo de leve em cima da cena azul.